Leitura de um pequeno excerto de um conto actual adaptado (23 Nov 2013)( texto integral em pdf no final do conto)
Um lobo virtual
Mafalda era uma jovem de 17 anos. Tinha várias colegas, mas nenhuma amiga. Acreditava facilmente nas pessoas, mas não gostava muito de se abrir. Não se sentia segura a nível emocional, e qualquer palavra menos boa ficava amuada.
Embora fosse uma pessoa bonita, como qualquer ser humano, era uma especialista em reclamar sobre o seu corpo. Não gostava dos cabelos, do nariz, da pequena barriguinha e principalmente reclamava porque achava que os seus seios eram pequenos. Gastava uma hora diariamente para se arranjar em frente do espelho e conseguia ver defeitos que não existiam.
Raramente se sentia bem com o que vestia . Tinha, portanto, a síndrome PIB, Padrão Inatingível de Beleza. A sua autoestima era péssima. Apesar de Mafalda não gostar de conversar diretamente com as pessoas, adorava navegar na Internet. Parecia amiga de toda a gente.
Certa vez, conheceu numa sala de chat um rapaz chamado Vasco. Vasco gostava de manipular as raparigas com quem conversava. Só contava mentiras, dizia-se apaixonado por elas, que nunca havia encontrado alguém tão amoroso, sensual e amável. Também alterava a sua idade: tinha 32 anos, mas dizia que tinha 22.
Mentia ao dizer que era um milionário, mas que se sentia uma pessoa infeliz quando na realidade, vivia em crise financeira, não gostava de trabalhar, e gozava com a ingenuidade das pessoas. E como no computador se aceita tudo, comentava que precisava da ajuda das raparigas que queria conquistar. Elas derretiam-se por ele e ele divertia-se. Vasco era um psicopata virtual, alguém que não se importava com a dor dos outros nem com as consequências dos seus comportamentos.
Mafalda, no começo da relação pela Internet, não falava da sua vida particular. Mas, pouco a pouco, Vasco foi envolvendo-a. Passados dois meses, ela começou a achá-lo o melhor homem do mundo. Considerava-o o mais incompreendido dos seres. Como moravam em cidades diferentes e devido à distância, trocavam fotografias. Ele dizia que nunca conhecera alguém que fosse tão linda como ela. Ela ficava fascinada. Parecia que a sua baixa autoestima fora resolvida como que por magia. Apaixonou-se por ele. Ficou obcecada. Não o tirava da cabeça.
No dia em que não conversava com Vasco, entristecia-se e tinha crises de ansiedade. O vampiro da Internet, após beber "sangue" emocional das raparigas, afastava-se delas. O desespero delas era a glória dele. Mafalda, que tinha conseguido o telefone dele, não parava de telefonar. E ele mentia, dizia que os seus problemas o impediam de conversar diariamente com ela.
A jovem começou a ficar deprimida, começou a ter anorexia nervosa, não se alimentava bem, não tinha vontade de viver e as suas noites eram péssimas. Os seus pais queriam que ela se afastasse da Internet e não telefonasse mais para ele. Mas Vasco tornou-se um deus para Mafalda. Ela criou no seu inconsciente uma imagem superdimensionada dele. Tinha certeza de que ele era o homem da sua vida.
Quando Mafalda tentou esquecê-lo, Vasco apareceu como um predador. Elogiava-a, dizia que a amava, que ela era inesquecível. Ela novamente reacendeu a sua paixão e insistia em vê-lo fisicamente, mas ele dava mil desculpas. Esta troca emocional começou a fazer parte de um romance doentio.
Os atritos com seus pais aumentaram. Ela afastou-se dos amigos, dos que diziam que "o rapaz não prestava". Ela só ouvia a voz da sua paixão platônica. Certa vez, pensou em morrer, tomou montes de comprimidos. Foi levada para o hospital, sofreu muito, mas, felizmente, sobreviveu e não teve consequências físicas graves.
Ao ver a gravidade da doença da sua filha, os seus pais baixaram um pouco a guarda e deixaram-na continuar a conversar com ele pela Internet .Vasco consumia drogas, cocaína, era alcoólico e teve várias passagens pela polícia, mas ela não sabia. O computador é capaz de transformar um lobo num cordeiro.
O príncipe que nunca existiu
Meses depois, de tanto ela insistir, ele resolveu aparecer, mas queria vê-la a sós. Finalmente Mafalda ia encontrar-se com "a pessoa mais encantadora do mundo", pensava ela. Marcaram um encontro numa cafetaria no centro da cidade.
Ao vê-lo, ela correu para os seus braços, mas ele parecia uma pedra de gelo. Quando ela insistiu em beijá-lo, ele virou o rosto. Foi uma deceção atrás da outra. Vasco mastigava a pastilha com desprezo enquanto olhava para o movimento na rua, como se não se importasse com Mafalda. Ela insistia em conversar sobre eles, e ele mostrava aversão a essa conversa.
Quando ela disse que ele era tão diferente do Vasco da Internet, ele foi estúpido e de forma seca disse;
— Chega desta conversa e vamos mas é para um hotel.
Chocada com o desprezo dele e percebendo que durante quase um ano criou a imagem de uma pessoa que nunca existiu, ela levantou-se subitamente e saiu perturbada. Nos dias que se seguiram, voltou a ter outra crise depressiva. Punia-se muito e achou-se a pessoa mais ingênua da Terra. Começou a rejeitar-se mais ainda, a achar-se feia e desprezível. Começou também a faltar à escola. Pela primeira vez, ela aceitou procurar a ajuda de um psicoterapeuta.
Na terapia, a psicóloga ajudou Mafalda a ter dignidade, separar a fantasia da realidade. Encorajou-a a sair da plateia e ser a atriz principal da sua história. Disse que não deveria deixar nada e ninguém controlá-la, só ela mesma. Comentou que por nada neste mundo ela poderia vender a sua liberdade.
Aos poucos, Mafalda se reergueu. Deixou de ser "tapete" do seu falso príncipe. Entendeu que o verdadeiro amor traz tranquilidade e alegria , não prisão e angústia. Meses após essa luta interior, começou a sentir-se mais livre ,a aprender a proteger as suas emoções e a superar as zonas de conflito do seu inconsciente.
O Vasco interior morrera, o do exterior ainda existia, mas não a interessava. Mafalda aprendeu uma importante lição: deveria ter um caso de amor consigo mesma, antes de ter um grande amor fora dela.
Sem raízes, o amor vira uma catástrofe emocional
Após contar esta história, o professor Júlio perguntou:
— Por que é que as paixões pela Internet raramente têm raízes?
— Por que eles não se conhecem de fato um ao outro — respondeu Paulo, que já tinha sofrido nessa área, embora não tanto quanto Mafalda.
Sentados em semicírculo estimulava-se o debate das ideias. Os alunos que raramente falavam, começaram a expressar os seus pensamentos. Além disso, a música ambiente desacelerava os pensamentos dos alunos e melhorava a concentração e o rendimento intelectual.
— Parabéns, Paulo! — elogiou o professor. — Quando os internautas apaixonados saem do computador e entram na vida real, começam a conviver com os defeitos, manias e conflitos uns dos outros e aí surgem as crises. Se essa fase não for superada, o que era belo virtualmente torna-se uma catástrofe emocional.
O professor incentivou os seus alunos a que procurassem o amor brando, inteligente, regado com diálogo e temperado com respeito e cumplicidade. Em seguida, disse:
— Toda a relação na qual o ciúme é exagerado, em que um quer controlar o outro, não cria raízes, morre facilmente. Uma pequena dose de ciúmes é quase inevitável e é até aceitável, mas uma overdose de ciúme sufoca a relação, destrói completamente o amor — disse Júlio, como um mestre no assunto.
Alguns alunos sentiram um nó na garganta com estas palavras. Alguns deles faziam isso mesmo, controlavam , não davam espaço para respirar, e tinham ciúmes até de colegas. Entenderam que uma pessoa muito ciumenta não se valoriza, é insegura, e vive sempre com medo de perder. O verdadeiro amor cultiva-se no terreno da liberdade.
Por outro lado, entenderam também que todo o relacionamento, como o de Mafalda, que é construído sem transparência, torna-se artificial e não suporta as mínimas tempestades da vida.
Júlio escreveu no quadro:
Uma pessoa inteligente aprende com os seus erros, uma pessoa sábia vai mais além, aprende com os erros dos outros, pois é uma grande observadora. Procurem um grande amor na vida e cultivem-no. Pois, sem amor, a vida torna-se um rio sem nascente, um mar sem ondas, uma história sem aventura! Mas, nunca se esqueçam, em primeiro lugar tenham um caso de amor com vós mesmos.
Todas estas frases ficaram por mais de uma semana no quadro. Os outros professores e alunos copiavam-nas em cartazes e afixavam-nas nos corredores da escola. Deste modo, a Escola dos pesadelos ia, pouco a pouco, tornando-se uma escola de sabedoria.
— No campo da afetividade não esperem errar muito para aprender grandes lições. Falhar nesta área sempre causa muita dor.
— Como o professor conhece bem essa área? — perguntou o Molas.
— Porque fui uma pessoa inteligente, mas não sábia. Não observei o erro dos outros, tive de aprender com os meus. Atravessei crises nos meus relacionamentos e, como ninguém me orientou, tive de aprender sozinho, com duras penas,mas velejei no belíssimo e turbulento oceano da emoção.
Finalizando o seu diálogo, o professor disse:
— O mestre dos mestres certa vez disse: amai o próximo como a vós mesmos. Se não amarem primeiramente a vós mesmos, nunca amarão verdadeiramente a alguém que está próximo de vocês. Muitos religiosos têm baixa autoestima porque se tornaram carrascos de si mesmos.
Os alunos aplaudiram. Resolveram aprender a ser navegantes nas complexas águas da emoção.
Adaptado para catequese em 22/11/2013
Fátima Rodrigues Cristão e Nuno Correia.
Texto original de Augusto Cury “ Filhos brilhantes, alunos fascinantes”